O poder de uma surpresa

Era mais uma sexta no meio de tantas outras daquele mês. Esperei, pacientemente, que ela secasse cada fio de cabelo e que se vestisse para mais um dia monótono de trabalho. Fingi que dormia como uma pedra, acalmei a respiração ansiosa e forcei as pálpebras com força, pois precisava manter o disfarce e não queria, por nada no mundo, estragar a surpresa que com muita antecedência tinha sido planeada. Assim que ouvi a porta de saída a ser fechada, corri para arrumar a mala dela. Ela ainda não sabia, mas naquela noite, diferente das últimas mil, iríamos dormir em Paris. Confesso que fiquei meio confuso diante do armário a transbordar, dos tantos vestidos parecidos e dos incontáveis pares de sapato, mas consegui, com auxílio da memória, lembrar-me das infinitas combinações que já tinha visto ela vestir sorridente e, modestamente, acho que reuni as roupas necessárias. Propositadamente, só levei a roupa interior mais sexy, afinal, queria que os próximos dias fossem especiais. Além de roupas, na mala dela coloquei algumas poesias inéditas que tinha feito para reinventar sorrisos e uma máquina fotográfica analógica que ela vinha a cobiçar há já algum tempo. Não parei por ai: junto com as coisas de banho, coloquei um óleo de massagens e nele uma etiqueta a dizer: “vale uma massagem?”.

Por volta das quatorze horas, mandei uma mensagem a dizer que naquele dia a iria buscar ao trabalho para jantarmos. Ela perguntou-me se íamos comemorar algo e eu, em tom falsamente desanimado, apenas disse que conheceríamos o recém-inaugurado restaurante de um amigo. O tempo parou naquela tarde. Tentei ler algo, mas não tinha concentração suficiente. Tentei ver TV, mas as únicas imagens que detinham a minha atenção eram aquelas que eu mesmo criava, a pensar nos momentos que viveríamos em Paris. Tentei dormir, mas o coração batia muito além do peito. Depois de horas a olhar para os ponteiros do relógio, finalmente saí de casa para buscá-la. Estava a vestir aquele casaco de cabedal que ela adorava e claro, a cheirar ao mesmo perfume que usei quando nos conhecemos.

Ela entrou no carro, tocou nos meus lábios e logo reclamou do seu chefe resmungão. Eu disse que tudo ia ficar bem, coloquei o som que sempre a faz dançar e com a mão na coxa dela, consegui fazê-la mudar de assunto, ou melhor, esquecer o antigo. Ela, não sei se por desatenção ou por falta de noção geográfica, nem percebeu que nos aproximávamos do aeroporto e eu, fazia de tudo para distraí-la, mostrando fotos no Instagram. Só quando já tinha estacionado o carro dentro do aeroporto, ela perguntou o motivo de estarmos ali e eu disse que o restaurante era lá dentro. Desta vez fui salvo pela ingenuidade dela, que entrou no aeroporto como quem estava a entrar na zona de alimentação de um shopping qualquer. Segui em direção à área dos restaurantes e logo fiz cara de quem confundiu a data de inauguração. Pedi desculpas. Ela fez cara de frustração. Então sugeri que entupíssemos algumas artérias no McDonald´s e ela aceitou. Anotei o pedido dela, disse para ela esperar sentada e fui buscar os lanches. Sorri para a empregada e convenci-a a dar-me uma caixa de hambúrguer extra, para dentro dela colocar o bilhete de avião com destino a Paris.

Coloquei a bandeja com os lanches na frente dela e quase morri de ansiedade quando percebi que ela ia comer os nuggets primeiro, mas esperei, quase sem aguentar, ela mergulhar cada pedaço de frango no molho. Assim que ela pegou na caixa leve, sem o Big Mac dentro, fez cara de quem não estava a entender nada. Ela franziu a sobrancelha e ao abrir a caixa, fez um minuto de silêncio. O minuto mais longo que vivi até agora. Ela olhou-me e eu sorri com cara de quem tinha aprontado alguma. Ela olhou novamente para o interior da caixa e com uma fina película de água já visível nos olhos, disse-me que me amava.

A viagem foi linda, maravilhosa, mas nem o céu mágico de Paris conseguiu superar o sorriso que ela me deu quando abriu a caixa. Nada foi tão lindo quanto a cara que ela fez quando esbarrou com a surpresa. Nada me conseguiu emocionar tanto quanto as caras que ela fez ao desfazer a mala e ao descobrir que o meu interesse maior não era apenas conhecer um novo território mas também redescobrir cada curva do corpo dela. Paris era só mais uma desculpa para vê-la feliz.

Adaptação de um texto de Ricardo Coiro

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